Borba Gato: Uma Autópsia
Aquele sábado amanheceu como muitos outros. O céu azul, pacato, cobria toda a cidade. Nenhuma nuvem o atravessava, e sua monotonia prometia um dia tão parado quanto. Entretanto, cinzas começaram a perturbar o marasmo antes previsto. Ainda que lentas, eram vigorosas, e tomaram a paisagem daquele sábado. As chamas eram o oposto do dia em que aconteceram: representavam a raiva e a indignação crescentes em uma parcela da população que, se antes era intimidada pelo marasmo trazido pelo azul do céu, agora trazia nova paleta de cores para a paisagem.
O motivo do incêndio? A estátua feita em homenagem a Borba Gato, um bandeirante, o qual foi peça chave para o desbravamento do território, portanto, um “herói nacional”. Contudo, ao mesmo tempo, foi responsável pela morte de incontáveis indígenas, o que o transforma, no mínimo, num assassino. As duas visões, ainda que opostas, se complementam, pois Borba Gato desbravou o território justamente para que pudesse escravizar os indígenas que cedessem à submissão imposta por ele. Às comunidades nativas que não a aceitassem, ele não reservava destino diferente de uma morte lenta, cruel, e que deixa suas marcas até os dias atuais.
Essas marcas, contudo, foram cores apagadas da história do nosso país por muito tempo. O azul monótono do céu foi imposto como única visão possível para todos, e por pessoas que tinham interesse direto na dominação que essa visão monocromática traria. A estátua foi construída em 1963, às vésperas da Ditadura civil-militar, e tinha como objetivo criar uma “identidade nacional” a partir da memória dos bandeirantes e de uma versão “oficial” da história, ou seja, uma narrativa na qual eles, os então homens brancos, seriam os grandes heróis e exploradores do nosso país, enquanto as comunidades indígenas seriam, na realidade, o obstáculo a ser vencido.
Cabe dizer aqui, entretanto, que os bandeirantes não eram homens brancos. Eram, na realidade, mestiços. Filhos de brancos com indígenas, majoritariamente, andavam descalços e conheciam mais sobre os costumes nativos da nossa terra do que sobre a “alta cultura europeia”. Tinham domínio sobre as línguas nativas, e era relativamente difícil encontrar um bandeirante que soubesse falar português com maestria e sem o sincretismo desse com os dialetos indígenas. Eles estavam, portanto, mais próximos das culturas indígenas do que da dos europeus, e só desbravaram o território porque eram pagos para tal.
A estátua de Borba Gato, todavia, mostra uma visão diferente. Com trajes tipicamente europeus, botas, barba clara e com olhar imponente, representa o ideal a ser difundido dentro daquele contexto, o de criação de uma identidade nacional, o que faz com que a estátua seja muito mais um símbolo da época em que foi construída do que de fato um retrato do bandeirante. Identidade essa uniforme, falsa, a qual cobre com o verniz azul e “monótono” do eurocentrismo e do racismo as cores do sofrimento de milhões de indígenas e quaisquer outros que fossem diferentes dos homens brancos. Identidade essa que tira vantagem direta dessa versão dos bandeirantes, porque silenciando os indígenas, reais desbravadores do território, os roubaram e usaram toda a riqueza pertencente a eles para seus objetivos gananciosos e cruéis.
Mas não foram apenas os indígenas os oprimidos por uma visão única e predatória. Ao longo de toda a sua história, o Brasil teve seus recursos e seu povo explorado com base em ideologias de eugenia racial e de superioridade cultural e de classe. Na época do bandeirante em questão, a própria Igreja Católica dava aval para a escravidão dos povos africanos, a partir da Bula Dum Diversas, do final do século XV. Padre Antonio Vieira, o qual ficou conhecido por fazer lindos sermões no século XVII, também defendia a escravidão, conforme consta em uma de suas homilias, na qual ele comparava o sofrimento dos escravos ao de Cristo em sua Paixão, o que transforma a escravidão em uma espécie de “martírio divino e orquestrado por Deus”:
“Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Salvador padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão(...) Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio.” A. Vieira, Sermões. Tomo XI. Porto: Lello & irmão. 1951 — Adaptado
Posteriormente, no século XIX, com o surgimento da teoria evolucionista de Darwin, o racismo encontrou terreno ideal para prosperar com respaldo científico. Utilizando-se de teorias biológicas para explicar fenômenos sociais, foi criada a ideia, chamada de darwinismo social, de que a evolução humana é linear, e o extremo mais “atrasado” era composto por povos que não fossem os europeus, enquanto a máxima potência da evolução era a sociedade europeia, e era função desses trazer para aqueles o conhecimento que lhes carecia. Essa justificativa foi utilizada até a última gota para explorar e dizimar civilizações do mundo todo, e encontra suas marcas até hoje. No Brasil, os indígenas e negros eram agora cientificamente inferiores, e tiveram, na opressão europeia, a salvação de suas “mentes ocas e incapazes de compreenderem sozinhos o real intelecto”. Com o domínio cultural sobre outras civilizações, a narrativa do homem branco cobriu todo o céu, e apagou todas as outras cores. Não é à toa que sabemos pouquíssimo dos nossos antepassados africanos e escravos, e que os povos indígenas, nossos conterrâneos, nos parecem muito mais estrangeiros do que os povos europeus.
Hoje, mesmo com o suposto fim do darwinismo social e com o fim da escravidão, somos oprimidos pela naturalização de uma história uniforme e que imacula a imagem europeia. É do interesse daqueles que querem continuar explorando o território e o povo brasileiro que negros e indígenas sejam apagados do Brasil. Tanto literalmente, quanto no campo das ideias e dos ideais: bandeirantes são endeusados como os heróis e desbravadores do Brasil, caçadores daqueles que eram menos desenvolvidos e que queriam promover a barbárie, enquanto negros que fugiam das condições sub humanas da escravidão e os indígenas, que se opunham a esse mal e à catequização forçada dos jesuítas, são considerados “desobedientes”. Temos estátuas, ruas e rodovias homenageando os assassinos disfarçados de heróis e pouquíssimas homenagens às suas vítimas. O apagamento das cores diferentes do azul monótono daquele céu de sábado em São Paulo é um projeto de Estado, o qual permanece como norte da nossa história.
Na realidade, escrever sobre esse tema me fez pensar sobre o que é a barbárie de verdade. Desde que a estátua foi queimada, muitos acusam os autores do ato de “vândalos”, e de tentarem apagar a história de um homem heroico e destemido. Quando Euclides da Cunha foi o jornalista encarregado de escrever sobre a Guerra de Canudos, movimento messiânico contra as condições sub humanas a que o povo era submetido no sertão nordestino, levantou o mesmo questionamento, o da civilização versus barbárie. De volta a 1897, as tropas do Exército, que deveriam ter resgatado aquelas pessoas de Canudos e trazido a elas melhores condições, na realidade, as dizimou. A violência foi tanta, que o próprio Euclides da Cunha se poupou de narrá-las em seu posterior livro, Os Sertões, exceto por um trecho:
“Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. (…) Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?…” da Cunha, Euclides. Os Sertões, 1902. Coimbra, Wohnrecht. 2014
Onde estaria, então, a barbárie? No povo, que tentou fugir da pobreza e da fome, e que foi pintado de ameaça pelo Exército, ou no Exército, que dizimou mais de vinte mil pessoas (população aproximada de Canudos), não deixando sobreviver nem mesmo os poucos que se renderam?
Aqui, com a queima do Borba Gato, me deparo com a mesma questão: a barbárie está em queimar uma estátua que representa os valores eugenistas da nossa sociedade, ou na construção desses valores, a partir do genocídio negro e indígena, que perdura no Brasil desde 1500, e que insiste em apagar toda história que não seja a branca?
Não acho que queimar uma estátua seja queimar a história e apagar Borba Gato dela. Pelo contrário, o que ocorreu no sábado fez com que a memória daquele ficasse mais viva do que nunca. Só que, dessa vez, uma versão dos fatos, a qual geralmente ficava esquecida, oculta sob o manto da visão eurocêntrica, determinista e racista, hoje arde em chamas e fica visível para todos. Queimar Borba Gato o deixou mais visível, sim, porque queimou o verniz que o recobria e o fazia de herói, deixando, de uma vez por todas, exposto o que ele, de fato, representa.